Metaesquema,
Hélio Oticica |
Para iniciar a leitura do texto,
recomendo acender um cigarro, se preparar para algo visceral, algo cru, algo
que nos remete a antiga literatura beat de Bukowiski,
Kerouac e Ginsberg... a santíssima Trindade. Claro, ressaltando que nada é
sagrado, nada é maravilhoso... como nós, lembra Belchior, o bigode. Boa
leitura!
OS SOBREVIVENTES
(Para ler ao som de Angela Ro-Ro)
Para Jane Araújo, a Magra
SRI LANKA, quem sabe? Ela me diz, morena e ferina, e eu respondo por que não?
mas inabalável continua: você pode pelo menos mandar cartões-postais de lá,
para que as pessoas pensem nossa, como é que ele foi parar em Sri Lanka, que
cara louco esse, hein, e morram de saudade, não é isso que te importa? uma
certa saudade: em Sri Lanka, brincando de Rimbaud, que nem foi tão longe, para
que todos lamentem ai como ele era bonzinho e nós não lhe demos a dose suficiente
de atenção para que ficasse aqui entre nós, palmeiras e abacaxis. Sem parar,
abana-se com a capa do disco de Ângela enquanto fuma sem parar e bebe sem parar
sua vodka nacional sem gelo nem limão. Quanto a mim, a voz rouca, fico por aqui
comparecendo a atos públicos, entre uma e outra carreira, pixando muros contra
usinas nucleares, em plena ressaca, um dia de monja, um dia de puta, um dia de
Joplin, um dia de Tereza de Calcutá, um dia de merda enquanto seguro aquele
maldito emprego de oito horas diárias para poder pagar essa poltrona de couro
autêntico onde neste exato momento vossa reverendíssima assenta sua preciosa
bunda e essa exótica mesinha de centro em junco indiano que apóia vossos
fatigados pés descalços ao fim de mais uma semana de batalhas inúteis,
fantasias escapistas, maus orgasmos e crediários atrasados. Mas tentamos tudo,
eu digo, e ela diz que sim, claaaaaaaro, tentamos tudo, inclusive trepar,
porque tantos livros emprestados, tantos filmes vistos juntos, tantos pontos de
vista sócio político artístico filosófico existenciais e bababá em comum só
podiam dar mesmo nisso: cama. Realmente tentamos, mas foi uma bosta. Que foi
que aconteceu, eu pensava depois acendendo um cigarro no outro, e não queria
lembrar mas não me saía da cabeça o teu pau murchos e os bicos do meus seios
que nem sequer ficaram duros, pela primeira vez na vida, você disse, e eu
acreditei, pela primeira vez na vida, eu disse, mas não sei se você acreditou.
Quero dizer que sim, que acreditei, mas ela não pára, tanta tesão mental
espiritual moral existencial e nenhuma física, e eu não queria aceitar que
fosse isso: éramos diferentes, ai como éramos diferentes, éramos melhores,
éramos mais, éramos superiores, éramos escolhidos, éramos vagamente sagrados,
mas no final das contas os bicos dos meus peitos não endureceram e o teu pau
não levantou, cultura demais mata o corpo da gente, cara, filmes demais, livros
demais, palavras demais, só consegui te possuir me masturbando, tinha a
biblioteca de Alexandria separando nossos corpos, enfiava fundo o dedo na
buceta noite após noite pedindo mete fundo, coração, explode junto comigo,
depois virava de bruços e chorava no travesseiro porque naquele tempo ainda
tinha culpa nojo vergonha, mas agora tudo bem, o Relatório Hite liberou a
punheta. Não que fosse amor de menos, você dizia depois, ao contrário, era amor
demais, você acreditava mesmo nisso? Naquele bar infecto onde costumávamos
afogar nossas impotências em baldes de lirismo juvenil, imbecil, e eu disse
não, o que acontece é que como bons-intelectuais-pequeno-burgueses o teu
negócio é homem e o meu é mulher, podíamos até formar um casal incrível, tipo
aquela amante de Virginia Woolf, como era mesmo? Vita, Vita Sackville-West e o
veado do marido, não se erice, queridinho, não tenho nada contra veados, me
passa a vodka, o quê? e eu lá tenho grana pra comprar wyborowas? não tenho nada
contra lésbicas, não tenho nada contra decadentes em geral, não tenho nada
contra qualquer coisa que soe a: uma tentativa. Peço cigarro e ela me atira o
maço na cara, com que joga um tijolo, ando angustiada demais, meu amigo,
palavrinha antiga essa, angústia, duas décadas de convívio cotidiano, mas ando,
ando, tenho uma coisa apertada aqui no meu peito, um sufoco, uma sede, um peso,
não me venha com essas história de atraiçoamos-todos-os-nossos-ideais, nunca
tive porra de ideal nenhum, só queria era salvar a minha, ,veja só que coisa
mais individualista elitista, capitalista, só queria ser feliz, cara. Podia ter
dado certo entre a gente, ou não, afinal você naquele tempo ainda não tinha se
decidido a dar a bunda, nem eu a lamber buceta, ai que gracinha nossos
livrinhos de Marx, depois Marcuse, depois Reich, depois Castañeda, depois Laing
embaixo do braço, aqueles sonhos colonizados nas cabecinhas idiotas, bolsas na Sorbonne,
chás com Simone e Jean-Paul nos 50, em Paris; 60 em Londres ouvindo here comes
the sun here comes the sun, little darling; 70 em Nova Iorque dançando
disco-music no Studio 54; 80 a gente aqui, mastigando essa coisa porca sem
conseguir engolir nem cuspir fora em esquecer esse gosto azedo na boca. Já li
tudo, cara, já tentei macrobiótica psicanálise drogas acupuntura suicídio ioga
dança natação Cooper astrologia patins marxismo candomblé boate gay ecologia,
sobrou só esse nó no peito, agora o que faço? Não é plágio do Pessoa, mas em
cada canto do meu quarto tenho uma imagem de Buda, uma de mãe Oxum, outra de
Jesuzinho, um pôster de Freud, às vezes acendo vela, faço reza, queimo incenso,
tomo banho de arruda, jogo sal grosso nos cantos, não te peço solução nenhuma,
você vai curtir os seus nativos de Sri Lanka depois me manda um cartão-postal
contando qualquer coisa como ontem à noite, à beira do rio, deve haver um rio
por lá, um rio lodoso, cheio de juncos sombrios, mas ontem na beira do rio, sem
planejar nada, de repente, por acaso, encontrei um rapaz de tez azeitonada e
olhos oblíquos que. Hein? claro que deve haver alguma espécie de dignidade
nisso tudo, ,a questão é onde, ,não nesta cidade escura, não neste planeta
podre e pobre, dentro de mim? Ora não me venhas com
autoconhecimentos-redentores, já sei tudo de mim, tomei mais de cinqüenta
ácidos fiz seis anos de análise, já pirei de clínica, lembra? você me levava
maçãs argentinas e fotonovelas italianas, Rossana Galli, Franco Andrei, Michela
Roc, Sandro Moretti, eu te olhada entupida de mandrix e babava soluçando perdi
minha alegria, anoiteci, roubaram minha esperança, enquanto você, solidário e
positivo, apertava meu ombro com sua mão apesar de tudo viril repetindo reage,
companheira, reage, a causa precisa dessa tua cabecinha privilegiada, teu
potencial criativo, tua lucidez libertária, bababá bababá. As pessoas se
transformavam em cadáveres decompostos à minha frente, minha pele era triste e
suja, as noites não terminavam nunca, ninguém me tocava, mas eu reagi,
despirei, e cadê a causa, cadê a luta, cadê o potencial criativo? Mato, não
mato, atordôo minha sede com sapatinhos do Ferro’s Bar ou encho a cara sozinha
aos sábados esperando o telefone tocar, e nunca toca, ouvindo samba-canção e
blues com caipira de vodka, neste apartamento que pago com o suor do potencial
criativo da bunda que dou oito horas diárias pra aquela multinacional fodida.
Mas eu quero dizer, e ela me corta mansa, claro que você não tem culpa,
coração, caímos exatamente na mesma ratoeira, a única diferença é que você
pensa que pode escapar, eu quero chafurdar na dor deste ferro enfiado fundo na
minha garganta seca, me passa o cigarro, não estou desesperada, ,não mais do
que sempre estive, não estou bêbada nem louca, estou é lúcida pra caralho e sei
claramente que não tenho nenhuma saída, não se preocupe, depois que você sair
tomo banho frio, lente quente com mel de eucalipto e gin-seng, depois deito,
depois durmo, depois acordo e passo uma semana a ban-chá e arroz integral,
absolutamente santa, absolutamente pura, absolutamente limpa, depois tomo outro
porre, cheiro cinco gramas, bato o carro numa esquina ou ligo para o CVV às
quatro da madrugada e alugo a cabeça dum panaca qualquer choramingando coisas
do tipo preciso-tanto-de-uma-razão-para-viver-e-sei-que-esta-razão-só-está-dentro-de-mim-bababá-bababá,
até o sol pintar atrás daqueles edifícios, não vou tomar nenhuma medida
drástica, a não ser continuar, tem coisa mais destrutiva que insistir sem fé
nenhuma? Passa devagar a tua mão na minha cabeça, no meu coração, eu tive tanto
amor um dia, pára e pede, preciso tanto, tanto, tanto, bicho, não me
permitiram, então estendo os dedos e ela fica subitamente pequenina apertada
contra meu peito, perguntando se está mesmo muito feia e meio puta e muito
velha e completamente bêbada, eu não tinha essas marcas em volta dos olhos, eu
não tinha esses vincos em torno da boca, eu não tinha esse jeito de sapatão
cansado, e eu repito que não, que está linda assim, desgrenhada e viva, ela
pede que eu coloque uma música e escolho o Noturno número dois em mi bemol de
Chopin, quero deixá-la assim, dormindo no escuro, sobre este sofá, ao lado das
papoulas quase murchas, embalada pelo piano remoto como uma canção de ninar,
mas ela se contrai violenta e peded que eu ponha Angela outra vez, então viro o
disco, amor meu grande amor, caminhamos tontos até o banheiro onde sustento sua
cabeça sobre a privada para que vomite, e sem querer vomito junto, ao mesmo
tempo, os dois abraçados, bocas amargas, fragmentos azedos sobre as línguas,
ela puxa a descarga e vai me empurrando para a porta, pedindo que me vá, e me
expulsa para o corredor dizendo não esqueça então de mandar um cartão de Sri
Lanka, aquele rio lodoso, aquela tez azeitonada, que aconteça alguma coisa bem bonita
para você, te desejo uma fé enorme, em qualquer coisa, não importa o quê, como
aquela fé que a gente teve um dia, me deseja também uma coisa bem bonita, uma
coisa qualquer maravilhosa, que me faça acreditar em tudo de novo, que nos faça
acreditar em todos de novo, que leve para longe da minha boca esse gosto podre
de fracasso, de derrota sem nobreza, não tem jeito, companheiro, nos perdemos
no meio da estrada e nunca tivemos mapa algum, ninguém dá mais carona e a noite
já vem chegando. A chave gira na porta. Preciso me apoiar contra a parede para
não cair. Atrás da madeira, misturada ao piano e à voz rouca de Angela, nem que
eu rastejasse até o Leblon, consigo ouvi-la repetindo que tudo vai bem, tudo
continua bem, tudo muito bem, tudo bem. Axé, axé, axé! eu digo e insisto, até o
elevador chegar. Axé, odara!
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