Elis, quando eu soube, assim de imediato, não acreditei. Esse
vício de eternidade que a gente tem. E logo você, bicho? Tão agitadinha, tão
atrevidinha e cheia de vida. Fui ao banheiro lavar o rosto, molhar os pulsos e
olhar bem a minha cara cansada de 33 anos. Quando saí e espiei em volta tudo
continuava lá. Feito nada tivesse acontecido Lembrei duma história da mitologia
grega. Contam que quando morreu Pan, o deus da música, alguns pescadores
ouviram uma voz misteriosa gritar numa praia deserta: ‘O grande deus Pan
morreu!” E nunca mais se ouviu falar dele. Hélice – como te chamava a Rita,
acho que por causa daquela sua mania antiga de girar os braços enquanto
cantava, em tempos de Arrastão – eu não sei o que estou sentindo. Depois do
trabalho, saí a procurar pelas ruas do centro da cidade um sinal qualquer que
confirmasse ou desmentisse tua partida. Não encontrei nada. As lojas não
tocavam seus discos. Ninguém caminhava devagar. Não havia nenhuma melancolia
específica no céu, além do cinza habitual. Só eu assobiava baixinho “Acender as
velas já é profissão, quando não tem samba, tem desilusão”. (Vezenquando, só de
sacanagem, você dizia ‘Quando não sou eu, é Nara Leão’, e dava aquela risada
gostosa.) Então peguei um táxi e vim embora. Pedi para o motorista ligar o
rádio, mas tocava Núbia Lafaiete. Você acharia engraçado. Pedi para ele parar
antes de casa, comprei duas garrafas de vinho. Estou no meio da segunda.
Pimentinha, que difícil que tá. Você tem que amar quem você ama agora, JÁ, você
tem que começar a fazer tudo o que você quer porque a bruxa tá do lado
esperando. Elis, eu também vou morrer nem sei quando. Antes eu queria tanto ser
feliz. Embora nem saiba como é isso. Acendo uma vela branca procê ir embora
numa boa. Abro as janelas e ponho bem alto você cantando ‘Primeiro Jornal’,
porque é assim que quero te guardar, juntando tua voz matinal aos restos dos
sons noturnos que ainda boiam na casa. Não tenho medo da morte. Tenho medo da
vida. Baixinha, foi tão de repente... Mas ainda ontem, todo domingo de manhã eu
ia ao cinema Castelo assistir você cantando no programa do Maurício Sobrinho,
da Rádio Gaúcha. Você vinha com aqueles vestidos repolhudos cantar ‘Banho de
lua’ e aquelas versões tipo Fred Jorge (Vixe, como tô ficando veio, guria!). No
fim todo mundo aplaudia de pé, dançava e cantava junto. Depois, feito a Janis
Joplin fez com Port Arthur, você saiu de Porto Alegre. Foi ser estrela na vida.
Falavam mal, então como falavam: porque isso, porque aquilo, porque você chiava
como carioca, que era metida que nem parecia ter saído dali do Partenon, que
parecia que tinha Deus na barriga (descobri depois que você tinha mesmo, não na
barriga, mas na voz). Nunca mais te vi ao vivo, só no finzinho do ano passado,
no Anhembi. De repente você disse que queria falar com Deus. Eu me arrepiei.
Parecido com quando você cantava ‘Atrás da porta’. Ou quando, naquele inverno
comprido eu atravessava noites bebendo conhaque ouvindo ‘As aparências
enganam’. Uma vez a Paula Dip bateu na porta enquanto você cantava e, mal abri,
ela caiu no choro, porque tinha vindo contar-me coisas sobre esses enganos,
essas aparências.
Maninha, precisava ser agora? Em pleno verão, o sol quase em Aquário. Sei que
teu coração não aguentava mais tanta barra. Sacanagem... E juro que agora eu
ouvi você rindo assim: quá-quá-rá-quá-quá. Tô sentindo um oco, Hélice. Tão
ruim. O dia não conseguiu chover: eu queria agora chorar todo o choro que o dia
não chorou por ti. Não consigo. Eu tenho a impressão de que poderia
reconstituir, dias após dia, desde uma daquelas manhãs de domingo no Cine
Castelo (que coisa mágica, eu tinha 12 anos, você 15) até estas duas da
madrugada de hoje? Consigo não, Che. A gente, que é gaúcho, se entende. O tempo
existe, Pimentinha, e passa, leva no arrastão as coisas e as pessoas que não
morrem: ficam encantadas. Y solo resta el silencio, un ondulado silencio...
Nós te amávamos tanto, tanto. Guria. Até.
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