Devaneios Temporários

 

Minhas vistas se cansaram, já estou há exatos trinta minutos encarando meu relógio de pulso. O tempo não passa aqui dentro. Poderia ir lá fora e mendigar um cigarro para alguém, já que os meus acabaram. Por sorte amanhã é dia de visita e creio que meus pais iriam trazer alguns maços de cigarro. É um saco pedir cigarro. E não iria me submeter a fumar bitucas, igual ao serginho. O que me resta é encarar a parede; deitado de barriga para baixo e com o relógio digital, de pulso, enfiado na cara. O tempo não passa aqui dentro. E quanto mais se anseia pela hora das refeições, mais elas se mantêm distantes. O fardo de ser este filósofo moderno, é pensar demais. E pensar demais traz devaneios e desejos reprimidos à tona. Penso na minha casa, no meu quarto, nas minhas estantes de livros e como leio pouco. Estou com um livro que trouxeram, me entregaram anteontem e ainda não li uma página sequer. O Estrangeiro, de Albert Camus. Tinha uma mensagem da mãe na última página, rente a capa. "Segura as pontas, filho. Um mês passa rápido. Estamos todos rezando por ti. Seja forte. Te amo." E relendo me dei conta de que restava ainda um mês para a minha saída. Mas como papai fala: "Tudo passa... até uvas-passa". Menos o tempo. O tempo não passa aqui dentro. Poderia eu, pedir um calmante àquela enfermeira, como se chamava mesmo? Odete? Laís? Tava escrito no uniforme... não me lembro. Mas eu poderia. Quem sabe não iria controlar essa minha ansiedade... pelo menos até amanhã. Penso no absurdismo de Albert Camus e o seu árabe. Lembro de ter lido em algum lugar que aquele cara, o vocalista do The Cure... Robert Smith, havia composto "Killing an arab” por conta desse livro e posteriormente mudou o nome da música por pressão popular. Medo de incitar o ódio à muçulmanos, acho. Mas a história de Caetano se adequa mais à minha atual condição. Prisão, de certa forma. Ele lia o livro durante seu confinamento político, de certo sua mãe também rezava por ele. Porém nem todas as preces existentes aceleram o tempo, que aqui dentro… não passa.